Os Idosos também são gente

A dor silenciosa do abandono na terceira idade

23-04-2010 18:16

A lucidez, a alegria e a certeza de que é muito feliz impressionam em dona Vilma Árctico, de 76 anos. O passado de dinheiro que ela garante ter tido não lhe traz saudades. Mas o mundo dela é uma excepção, uma história que destoa da maioria dos 101 idosos de baixa renda confinados no Lar dos Velhinhos de Campinas. Todos estão lá porque foram esquecidos, de alguma forma, em algum ponto da vida. A maioria sente saudade – e muita – de quem os esqueceu. A maioria também não tem mais a lucidez que dona Vilma ostenta.

O estatuto feito especialmente para eles, há 5 anos, estabelece: “Nenhum idoso poderá ser objecto de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão”. A fila de espera na entidade onde dona Vilma está, com 280 solicitações, é uma prova de que o direito do idoso é ignorado, principalmente pelas próprias famílias. O quadro é ainda mais crítico se considerar que 70% dos que tiveram a “sorte” de conseguir a vaga são dependentes ou semi-dependentes. Ou seja, já não conseguem mais sequer tomar os próprios remédios sozinhos.

Desespero

“Pressão e desespero”. É a resposta dramática de Ercílio Jaque, de 68 anos, a uma pergunta relativamente simples, sobre o que ele sente na actual fase da vida. A pressão é tratada à base de medicamentos. Já o desespero tem um fundo emocional, provocado por problemas de família, que não encontra conforto em lugar algum. Viúvo, com um filho preso, ele tentou morar com o outro filho, mas problemas com a nora o afastaram da convivência familiar.

O Corinthians e a badalada contratação de Ronaldo no tome são os assuntos preferidos de Jaque. Gosta de falar sobre e ri com isso. Quando a conversa muda para família, a expressão no seu rosto também se modifica em segundos. Olhos rasos de água, saudade visível, vontade de voltar no tempo. O drama do ex-representante comercial o empurra, dia após dia, para a ala dos dependentes da casa de idosos. Suas ideias começam a ficar confusas e a conversa já não segue uma linha lógica.

Última opção

Há 14 anos trabalhando com os idosos no Lar dos Velhinhos, a enfermeira chefe Maria do Carmo já ouviu muitas histórias, e sabe como é importante reservar um tempo para dar ouvidos a elas. “Ninguém está aqui porque quer. Por mais sofrível que seja para ele, é mais vantajoso ficar com a família”.

Ainda quando há opção, o próprio interno não se lembra mais qual seria. “Eu não tenho filho”, afirma José Bertoline, com a convicção pertinente de seus 94 anos. Paletó, gravata e o chapéu são trajes obrigatórios para eles, mesmo nos dias quentes de verão. Esbanja simpatia e gosta de contar suas histórias de galanteador na juventude.

Mas galã mesmo é Sebastião dos Santos, de 71 anos, que conquistou o coração de Maria Aparecida Miranda, 69 anos, outra interna da casa. O namoro, iniciado há quase três anos, é um antídoto contra a solidão, uma nova página de um passado de sofrimentos e desencontros. Ele viúvo, há oito anos sem ver a filha. Ela solteira, sozinha, e relegada ao esquecimento depois de anos de trabalho como cozinheira. “Ninguém quer mais a gente para trabalhar”, diz Maria Aparecida, numa referência à idade avançada.

Planos para o futuro? “Não tem plano. Viver até o fim, para ver o que vai dar”, diz Sebastião, que lembra o autor norte-americano Anthony Hopkins, o psicopata do clássico “O Silêncio dos Inocentes”. O casal é um dos poucos internos que tem autorização para deixar o lar, para passear, ir ao cinema, relembrar com é a vida lá fora. Juntos, esquecem que são esquecidos.

Os idosos e o governo

O Lar dos Velhinhos, que abriga esses e outros personagens esquecidos na terceira idade, é a mais antiga entidade que se dedica a cuidar dos idosos do Brasil, e a maior em Campinas. É apenas um exemplo da situação na cidade. Da despesa mensal, na faixa de R$ 450 mil, apenas 4% chegam por meio do poder público, incluindo as três esferas do governo. O restante é obtido com eventos, sócio contribuinte, doações. Não raro, a entidade fecha no vermelho

“Em Campinas não existe lugar para (os idosos) dependentes com grau maior”, diz Malu Brasil, gerente de comunicação e marketing do Lar. E os dependentes são os que exigem mais atenção, mais gastos. Uma visita de alguns minutos à ala reservada a eles é suficiente para constatar que, sem os cuidados dos profissionais do abrigo, dificilmente conseguiriam prolongar a vida. As limitações físicas e mentais impressionam ainda mais com a idade avançada.

Em campinas, a população idosa, acima e 60 anos, é estimada em 120 mil pessoas. O projeto da administração municipal prevê, a partir de Maio, cinco pólos com atendimento integrado ao idoso, com actividades físicas, desportivas e culturais. A previsão é para atender mais de mil pessoas. O trabalho é preventivo, de valorização da terceira idade. “Não é para o mais vulnerável. É para todas as classes sociais”, explica a secretaria municipal de Cidadania, Assistência e Inclusão Social, Darci da Silva.

Arrimo de família

“Ai da sociedade se não fossem os idosos”, afirma Maria Gonzalez Alvarez, 81 anos, presidente do Conselho Municipal do Idoso de Campinas. A constatação dela é endossada pelo recente levantamento do IBGE, de 2008, que aponta os aposentados com mais de 65 anos como os responsáveis por 53% das despesas nas casas onde vivem. Os idosos já representam 10,5% da população brasileira. Entre 1997 e 2007, o crescimento na faixa etária acima de 60 anos foi de 47,8%.

“Muitas vezes suprimem até os remédios para ajudar a família”, sustenta José Alves dos Santos, que preside a Associação dos Idosos de Campinas. O dinheiro dos aposentados ganha cada vez mais importância na actual conjuntura económica. O valor é baixo na maioria dos casos, mas é garantido todos os meses. Para muitas famílias, o valor dos idosos está exactamente neste ponto, no financeiro. No Lar dos Velhinhos, por exemplo, alguns parentes só aparecem uma vez por mês, para buscar a aposentadoria.

Falta respeito

A falta de respeito, por parte dos governos e da sociedade, é a principal causa da situação de abandono em que se encontram muitos idosos, na avaliação das entidades organizadas da classe. “Há um abismo entre a velhice e as outras fases da vida”, afirma Maria Gonzalez, do Conselho Municipal. Uma das origens do problema, na sua avaliação, foi a retirada da grade escolar da disciplina Educação Moral e Cívica. “O idoso não tem visibilidade”.

Para José Alves, da Associação dos Idosos, o maior descaso acontece nas áreas da saúde e do transporte. Na sua avaliação houve avanço de algumas décadas para cá, mas que para melhorar ainda mais o respeito e a qualidade de vida, o próprio idoso precisa fazer sua mea culpa. Uma das formas seria sair da ignorância e tomar mais conhecimento, “para alcançar o direito na sua totalidade”.

Como ajudar contactos em Brasil

- Denúncia de mãos tratos e abandono: CRI (Centro de Referência do Idoso), na Avenida Morais Sales, em baixo do viaduto Laurão.

- Doações: Lar dos Velhinhos de Campinas – Rua Irmã Maria Santa Paula Terrier, 300, Proost de Souza, phone (19) 3743-4300 – www.lardosvelhinhosdecampinas.org.br
Conta corrente no Banco do Brasil: 32000-5, agência 2913-0.

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